Sobre o blog:

“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro” Ricardo H. Jones

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Perda Gestacional


Manuela, oito semanas. Carla, 33 semanas. Sandra, 37 semanas e meia. Os nomes são diferentes. As causas variam. O tempo de gestação muda. As emoções, essas são muito semelhantes. Os especialistas reconhecem que a perda gestacional é um acontecimento potencialmente traumático. Enfrentá-la e ultrapassá-la é uma tarefa que coloca em causa o equilíbrio psicossomático de uma mulher. A boa notícia é que a maioria consegue superar a perda sem sofrer perturbações psicológicas. Mas a falta de informação, o não reconhecimento social desta dor e alguma desumanização dos processos médicos dificultam uma experiência muito dura.



O que é normal sentir

«É muito importante mostrar aos casais que emoções como tristeza, frustração e choque são absolutamente normais e esperadas face às circunstâncias», esclarece Bárbara Nazaré, psicóloga clínica, colaboradora da Unidade de Intervenção Psicológica da Maternidade Dr. Daniel de Matos, em Coimbra. Durante o primeiro ano, é comum sentirem negação, raiva, culpa, revolta, solidão, fadiga, ansiedade, desespero, desamparo, dificuldade de concentração, pesadelos, perda de apetite, insónias, falta de memória. «São sentimentos universais, independentes do período de gestação ou da causa da perda. Muitos estudos não distinguem entre aborto espontâneo, interrupção médica da gravidez ou morte de recém-nascido e esta vivência é descrita como uma perturbação pós-stresse traumático. Se pensarmos que são equiparadas, podemos perceber a força desta experiência!», conclui Alexandra Leonardo, psicóloga clínica no serviço de Genética Médica do Hospital de Santa Maria. Há vários anos a acompanhar mulheres que passam por perdas gestacionais, também na Clínica da Mãe e da Criança, em Lisboa, esta psicóloga gostava de destruir certos mitos. «A perda é uma machadada no ego da mulher. Ideias como uma mulher que já tenha um filho anterior vai sofrer menos do que outra que tenha uma perda numa primeira gravidez ou que um aborto espontâneo precoce pode ser menos doloroso do que uma perda mais tardia não são verdade». Há muitos fatores a entrar nesta equação. Sandra Cunha, presidente da Associação Projeto Artémis, instituição de apoio a mulheres que sofrem uma perda gestacional, exemplifica: «Uma mulher que esteja há três anos para conseguir engravidar e que já está no limite da idade para um primeiro filho, se perde um bebé às dez semanas de gravidez, cai-lhe o mundo!» Ironicamente, após estar há dois anos e meio a trabalhar na Associação, como psicóloga, Sandra sofreu ela própria uma perda. «É tão diferente estar de fora ou ser a grávida. Eu achava que compreendia melhor do que ninguém o que estas mulheres sentiam…» E lembra-se: «Passei a entender que realmente faz parte, por exemplo, não querer estar com recém-nascidos, evitar lojas de roupas de bebé ou não falar ao telefone com uma grande amiga que está grávida».



Luto especialmente difícil

Uma saudade que foge a todas as regras. «Há pessoas que dizem que é muito mais difícil o luto de um bebé que se perdeu durante a gravidez do que o de alguém com quem se construiu história. Como é que se partilha o que não se viveu?», alerta Alexandra Leonardo. E reconhece algo fundamental para os outros perceberem: «A mulher está grávida no útero e na cabeça. E o sonho do filho vai sempre mais à frente do que no útero». A falta de reconhecimento social da necessidade de luto e a pressão pelo esquecimento são dois fatores que magoam muito as mulheres que sofrem uma perda gestacional e que dificultam o processo. Manuela Pereira sofreu duas perdas às oito semanas de gestação. Lembra-se da sua revolta pela incompreensão dos mais próximos: «Porque é que quando eu disse que estava grávida foi aqui o São João e no dia em que perdi o meu filho ninguém chorou? Se ficaram felizes por uma coisa que ainda não existia porque é que agora não percebem que esteja triste?» A necessidade de fazer o luto nestas situações é indiscutível. «Cientificamente reconhecida, pela frequência com que se dão depressões, síndrome pós-traumática, ansiedade, pânico, perturbações do sono e da alimentação», explica a psicóloga Alexandra Leonardo. E alerta: «O que faz mais falta é a consciencialização de que estas mulheres estão extremamente frágeis, de que o processo não termina na urgência do hospital, mas que se vai refletir no futuro da mulher, eventualmente no do casal e até com impacto familiar e social».



Como podemos ajudar

«Se tomássemos consciência que é um filho que se perde e não uma gravidez que não chegou ao fim e que os bebés não são descartáveis nem substituíveis, a atitude mudaria», lembra a presidente do Projeto Artémis. E aconselha certos comportamentos que fariam toda a diferença: «Mostrar-nos disponíveis para ouvir; não exigirmos que a pessoa esqueça; não banalizarmos a situação; respeitarmos o tempo que a pessoa precisa para fazer o luto; aconselharmos o casal a pedir ajuda, caso se verifique que não estão a conseguir lidar com a situação». A psicóloga Bárbara Nazaré reconhece que é difícil para muitas pessoas saber o que dizer ou fazer nesta situação. E realça: «Creio que o mais importante a fazer é reconhecer o sofrimento que a perda gera no casal, mesmo que a gestação esteja no início». Assim, são de evitar comentários tão usuais como: «Foi melhor assim, havia alguma coisa que estava errada com o bebé; És nova, daqui a pouco tempo já podes ter outro;  Daqui a uns tempos já nem te lembras disto; Pelo menos já tens um filho; Agora tens um anjo para cuidar de ti». Alexandra Leonardo aconselha: «Não nos é pedido que curemos o outro! É só estar com a mulher, abrir-lhe espaço para falar e, através da nossa relação de afeto, lembrar-lhe que a vida faz sentido, que existem outras partes do seu eu nas quais ela também é responsável e muito competente, nomeadamente como amiga, filha, irmã, profissional, colega de trabalho».


Caminho a percorrer

Aposta na prevenção e humanização de certos processos são medidas mais institucionais que poderiam ser facilitadoras. «Deveria ser disponibilizado apoio psicológico a todas as mulheres que chegassem às urgências por perda gestacional, mesmo de primeiro trimestre. Os médicos deveriam estar mais atentos à necessidade do processo de luto e os psicólogos deviam ficar mais sensíveis aos processos médicos envolvidos, alguns simplesmente horríveis», defende Alexandra Leonardo. Ao Projeto Artémis chegam muitas histórias «escabrosas». Sandra Cunha conta uma atrás da outra. «Só a forma como dão a notícia pode fazer diferença na forma como a mulher irá gerir a situação». O esclarecer sobre os vários passos e procedimentos seguintes é também essencial. Coisas tão simples como informar a mãe, no caso de uma perda mais tardia, que lhe vão perguntar na sala de partos se quer ver o bebé, parece óbvio, mas nem sempre acontece. A sensibilidade dos profissionais de saúde para lidarem com estes casais é incomparavelmente superior à que se verificava há algumas décadas. Medidas como a tentativa de atribuição de um quarto à parte, protegendo-as do contacto com as mães de recém-nascidos é sinal disso. Mas o caminho a percorrer ainda é grande. Estudos como o que Bárbara Nazaré está a efetuar (doutoramento centrado no processo de luto associado à experiência de interrupção médica da gravidez e a vivência de uma gravidez subsequente a essa perda) permitem que os profissionais de saúde de várias áreas estejam mais bem preparados para oferecer um apoio eficaz aos casais.

Para ajudar estes casais a lidar melhor com a situação, Alexandra Leonardo considera ainda que seria essencial passar-se informação sobre as diferenças do luto feminino e masculino: «Há um processo de luto feminino muito único, que os homens não podem sequer compreender em plenitude porque pura e simplesmente não é possível. O luto masculino é mais rápido e não é tão intenso. A diferença é saudável e a mulher não pode esperar que o homem viva a experiência da mesma maneira».

Com ou sem recurso a apoio psicológico, o percurso até à aceitação da perda e ao reequilíbrio emocional é complexo, requer tempo, coragem e resistência. Mas é possível.





CAIXA



Partilha Terapêutica

No luto da perda gestacional, o conversar com outras mulheres que passaram pela mesma experiência tem-se revelado benéfico. Há dez anos, Manuela Pereira queria falar da sua dor mas não encontrou espaço. «Foi ao criar a Associação Projeto Artémis que dei um sentido às minhas perdas. Construí um castelo com os pedregulhos que tinha juntado.»

Hoje em dia, a Associação ajuda centenas de mulheres que sofreram uma perda gestacional, através do seu fórum online, sessões abertas de partilha de experiências, terapias de grupo, consultas individuais, terapias de casal e até grupos de terapia com mães que entretanto conseguiram engravidar. Chegaram a realizar voluntariado no Hospital de São Marcos em Braga, visitando as mulheres internadas por perda gestacional. Organizam várias ações de sensibilização para o tema, como a largada de balões no Dia da Mãe ou a tentativa de reconhecimento nacional do dia 15 de outubro como o Dia para a Sensibilização da Perda Gestacional.

As portas que se fecham são muitas. «Enquanto as mulheres sentirem que na sociedade não se aceita falar sobre o tema, continuam a ter dificuldade em procurar ajuda, a não ser pela internet porque aí ninguém as vê, não têm que dizer a ninguém onde estão a ir e podem voltar sempre que lhes apetece. Mas assim o nosso trabalho fica muito limitado», reconhece a presidente da Associação, Sandra Cunha.

Mais informações

Manuela Pereira, autora dos livros Pacto de Silêncio e Maternidade Interrompida, fundou o  Projeto Artémis porque sentiu que a dor desta perda era mais difícil porque «não assenta em memórias nem partilhas. Apenas um vazio cheio de nada», como descreve  num dos  livros que escreveu.



Site: www.projectoartemis.pt

E.mail: projeto.artemis@iol.pt

Tel. 969 518 222



Revista Pais&Filhos

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