Sobre o blog:

“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro” Ricardo H. Jones

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Sobre a dor no parto...

Dr. Ricardo Jones, Obstetra Brasileiro
 

"Uma mulher em trabalho de parto está envolvida em uma amálgama de sentimentos e anseios, além de alterações hormonais, posturais, físicas, afetivas e espirituais. Portanto é de um reducionismo insensato tentar analisar matematicamente a dor de alguém, porque qualquer dor possui uma miríade de componentes imponderáveis e não quantificáveis. Esse tipo de avaliação só serve de pretexto aos intervencionistas, os que lucram com a ablação sem critério das sensibilidades dolorosas - entre outras, como a propriocepção - de gestantes. A nobre arte de aliviar a dor dos que sofrem, através do uso dos anestésicos, não pode fazer com que percamos totalmente a noção do sentido da dor dentro de um processo complexo e multifatorial como o parto.

A dor faz parte do nosso fantástico arsenal de defesa, como a febre, a inflamação, as exonerações, etc. Simplesmente determinar o seu extermínio sem levar em conta a cadeia de interconexões entre todos os componentes ilusoriamente separados é ingenuidade ou ignorância. Acabar com a dor do parto, simplesmente por ser dor, é insensato e representa uma visão diminutiva do nascimento. A dor faz parte do processo, mas o que se observa é que, dadas as condições para um nascimento afetivo e cercado de segurança emocional, essa dor pode ser inclusive imperceptível. A quantidade infinita de alternativas humanas para lidar com seus desafios é uma das características de nossa espécie. Entretanto, a medicina com sua sanha homogenizante acaba, muitas vezes, tratando pessoas como se cada corpo fosse igual ao outro; cada barriga uma cópia xerox da anterior, e cada mulher um fac-símile de todas as outras.

(...)

A “dor fisiológica” do parto, causada pela contração uterina, dilatação do colo, etc, é um fato inquestionável para a imensa maioria das mulheres, apesar de algumas poucas (...) relatarem a completa ausência de dor. Entretanto, esta experiência dolorosa é contrabalançada pelo acréscimo fantástico de endorfinas na circulação, num incremento de até 30 vezes os valores séricos normais, o que auxilia a parturiente a suportar as dificuldades do processo. Além disso, os suportes emocional, afetivo, social e espiritual oferecem sentido a esta dor, pois como já afirmavam os Terapeutas de Alexandria, “a única dor insuportável é a que não é interpretada”. Interpretar um sofrimento é conferir-lhe sentido, direção e propósito. Uma mulher, de qualquer latitude, cultura ou época, que consegue entender o sentido superior de suas agruras e dores, vai acabar por superá-las, mesmo que para isso tenha que enfrentar face-a-face suas próprias limitações. Por outro lado, uma sociedade individualista e hedonista, em que o sofrimento parece não ter nenhuma razão ou objetivo, dificilmente poderá convencer uma mulher da importância da luta e da superação, mesmo ao vivenciar seu principal rito de passagem.

Falamos, então, de uma dor fisiológica associada a um processo que desafia nossos limites ou de uma percepção patologizante de um fenômeno natural, que se torna mais doloroso tanto mais relegamos ao esquecimento suas dimensões afetivas, sociais e espirituais?

Afinal. De que parto estamos tratando?"

 

(Memórias do Homem de Vidro - Reminiscências de um Obstetra Humanista)

 

Minha tese é de que a natureza nos ofereceu para lidar com estas dificuldades.

Nosso problema é entender, imersos num mundo hedonista e individualista, o sentido pedagógico e adaptativo da dor.

Nesta sociedade só queremos o prazer, deixando a dor e a dificuldade ocupar o espaço da falha e do fracasso.

Uma pena... assim deixamos de aprender muito, e corremos o risco de criar uma humanidade menos competente.

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