O estetoscópio de Pinard — instrumento de madeira criado há mais de 130 anos para ouvir o coração do bebê no ventre da mãe — resiste ao tempo na casa da enfermeira Maria Clara Amaral. Mesmo já sem utilizá-lo, ele se tornou um símbolo do conhecimento antigo, aprimorado com tempo e estudo, com o objetivo de manter a força feminina. Com mais de 30 anos de profissão, o trabalho dessa enfermeira é marcado pela luta por partos mais humanizados e o retorno à época em que se nascia em casa, com a presença de uma parteira e de algumas outras mulheres que já haviam passado pela experiência de parir.
Maria Clara é obstetriz, uma espécie de “parteira da atualidade”. Com curso superior em enfermagem e habilitação em obstetrícia, profissionais como ela se dedicam à tarefa de afastar dos hospitais as mulheres em trabalho de parto, oferecer conforto, amenizar a dor e possibilitar que a chegada de uma nova vida ao mundo seja uma experiência da qual a mulher é a protagonista. “Uma cesariana não tem a mesma força que arrepia a gente. É um ato em que a mulher não sente, se torna passiva diante da ação de um médico. Gravidez não é doença para ser assunto de hospital”, defende. Mãe de dois filhos, Maria Clara ajuda a promover uma experiência pela qual não pôde passar: suas gestações foram de risco, motivo que a obrigou à cesárea.
Depois de uma carreira em que realizou uma série de partos domiciliares, Maria Clara se dedica à formação de novos profissionais. Ela é professora no curso de enfermagem na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na defesa do parto em casa, a obstetriz também ajuda a diminuir um dos índices mais alarmantes da saúde no Brasil: a quantidade de cesáreas realizadas todos os anos representa 90% do número total de partos feitos no País, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) indica como ideal entre 15% e 20%. Sem o interesse de substituir o médico e com a consciência de que, em casos com complicações, a única saída é apelar para o bisturi, a obstetriz acompanha os exames feitos pelos médicos e a gravidez desde o início. “A verdadeira preparação para o parto deve mostrar à mulher que ela é capaz e afastar dela o medo da dor e do sofrimento, causa de tanta gente não viver a experiência de dar à luz naturalmente.”
Experiência
A médica neonatologista Ana Paula Caldas Machado tem três filhos. Na primeira gestação, há sete anos, ela tentou ter um parto natural num hospital, mas teve complicações e foi preciso recorrer à cesárea. “Me senti frustrada e resolvi pesquisar outras formas de entender o parto. De início, achei que essa história de ter filhos em casa era maluquice, mas resolvi tentar. Geralmente, os médicos têm pressa e induzem à cesárea, alegando riscos e desculpas como pouco líquido, bacia pequena, falta de dilatação. Hoje, sei que não existe mulher que não dilata, há falta de paciência”, enfatiza. Ao engravidar pela segunda vez, Ana Paula contratou uma obstetriz de São Paulo, Vilma Nischi, para ser a responsável por ajudá-la a trazer ao mundo a garotinha Lis, hoje com 3 anos.
“Quando submetida à cesárea, a mulher fica completamente dissociada do que está acontecendo. Você não sente nada. No parto natural, principalmente se for em casa, a mãe é a dona da situação. Quando ela consegue transpor o limite da dor, se sente poderosa e realizada como mulher.” Se estivesse num hospital, Ana Paula tem a certeza de que os médicos teriam optado pela cesariana. Foram quase 30 horas de trabalho de parto, sempre com Vilma ao seu lado. Para amenizar a dor, entraram as estratégias das obstetrizes e das doulas, acompanhantes das parturientes (palavra que substitui a tradicional “paciente”, usada por boa parte dos médicos).
“A mulher muda de posição, toma banhos, recebe massagens. Nossa função é respeitar a intimidade e monitorar se ela ou o bebê correm algum risco e, se for o caso, correr para o hospital”, explica Vilma, que já realizou 128 partos domiciliares desde 2002, a maioria em mulheres com curso superior e de classe média-alta. Paulistana, ela atua na Capital, em Campinas e em Sorocaba. O custo desse tipo de parto fica em torno de R$ 3 mil, valor próximo ao cobrado por médicos para uma cesárea, sem as despesas de hospital.
Há dois meses, quando Raul, seu terceiro filho, nasceu, Ana Paula repetiu a experiência e estava com o bebê nos braços depois de três horas. “O pós-operatório da cesárea também é muito pior. A mulher precisa cuidar da cirurgia e do recém-nascido.”
Dor
Na Holanda, campeã dos partos domiciliares, 35% dos bebês nascem em casa e a taxa de cesárea é menor que 10%. Por lá, também proliferam os cursos de preparação para o parto natural, que têm o objetivo de mostrar à mulher que este é um processo mais doloroso, mas compensador. “Nos hospitais, a mãe não está num lugar propício para um momento tão íntimo. Há uma profusão de luzes, corre-corre, ela fica ao lado de outras mulheres que não conhece. Médicos e enfermeiros a estimulam a fazer força, sem respeitar o tempo e o desejo”, ressalta Maria Clara, que também defende o uso mais racional da anestesia peridural. “Mais do que tirar a dor, é uma forma de roubar da mulher a experiência completa de virar mãe. Ela faz força simplesmente porque lhe pedem, sem sentir nada.”
Como mãe e médica, Ana Paula também ressalta que, para o bebê, há muito mais vantagens num parto natural. “A passagem pela vagina faz com que o recém-nascido se comprima e isso retira toda a secreção que existir no pulmão. O risco de infecções também é mínimo. Na cesárea, além de não escolher em que hora vai nascer, a criança tem 30 segundos para se adaptar ao novo jeito de respirar fora do útero.”
Antes de dar à luz em casa, Maria Clara explica que é necessário uma avaliação das condições da mulher e do bebê. “Se a parturiente já tiver feito duas cesáreas, o parto natural não é indicado, pois o útero está mais frágil e pode romper com a força que ela fará. O tamanho do bebê e da bacia da mãe também precisam ser verificados, assim como a possibilidade de um encaminhamento imediato para um hospital no caso de complicações.”
Doula ajuda as mulheres a superarem dor e dúvida
Uma mulher para servir. Esse é o significado original, no grego, para a palavra doula, profissão da uruguaia Lucía Caldeyro, há 35 anos no Brasil. Ela é como as antigas acompanhantes das mulheres que tinham os filhos em casa no tempo das parteiras sem formação universitária. No vocabulário dessas novas profissionais, servir é o mesmo que orientar o casal sobre o que esperar do parto, ajudar a mulher a encontrar a melhor posição para dar à luz e sugerir estratégias naturais, como banhos, massagens e relaxamentos que aliviem a dor. A função surgiu nos Estados Unidos, depois de uma pesquisa na década de 70 que provou que partos com acompanhantes eram mais rápidos e fáceis.
Com 26 anos de profissão, Lucía começou como voluntária no Centro de Apoio à Saúde Integral da Mulher (Caism), da Unicamp, num grupo de parto alternativo. “O trabalho da doula começa junto com a gravidez. Mesmo depois que o bebê nasce, ela visita a família, transmite informações sobre amamentação e tira dúvidas da mãe, principalmente daquelas que têm o primeiro filho.”
Entre os instrumentos que ela leva aos partos que acompanha, estão bolas utilizadas por fisioterapeutas e bambolês. “O parto é algo natural como a digestão. Por isso, ninguém precisa ensiná-lo à mulher. Mas há fatores que atrapalham. Nossa função é auxiliá-la a ter um parto tranqüilo e seguro.” Na América do Norte, já existem cerca de 12 mil doulas. No Brasil, não há estimativas do número dessas profissionais.
Lucía teve quatro filhos, todos naturalmente. No último, ficou apenas 15 minutos com contrações. “Resolvi ser doula para ajudar mulheres a ter experiências tão boas como as minhas, desde a primeira gestação.” O alívio da dor, conseguido por meio de mudança de posição, tem uma justificativa na anatomia. Segundo a obstetriz Maria Clara Amaral, na posição ginecológica, em que a maioria dos partos é feita, a mulher sente maior desconforto porque uma veia chamada cava, localizada entre o útero e a coluna, é comprimida pelo peso do bebê. “Além disso, a mulher se sente muito vulnerável nesse posição. Ela deve escolher como quer ter o filho.”
http://www.cosmo.com.br/cidades/campinas/integra.asp?id=215924
Sobre o blog:
“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro” Ricardo H. Jones
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