Por Adriana Tanese Nogueira
05 de Outubro de 2008
Artigo publicado na Folha de São Paulo, Caderno Debates, dia 29/09/2008
O Prof. Antonio Carlos Lopes perguntava neste Caderno (12/09): “Mas será que a mãe tem realmente pleno domínio desse processo e amplas condições de tomar tal decisão sozinha? A palavra do médico, sua experiência cotidiana, a bagagem de conhecimento científico não valem nada numa hora dessas?”
Substituimos o sentimental “mãe” pelo preciso mulheres: são as mulheres capacitadas para decidir sobre seus partos e médicos dispensáveis? É aqui posto o dedo na ferida. Os médicos melindram-se pela possível perda de terreno. E eles têm razão, pois ao ganharem espaço as mulheres os depõem de seu tradicional pedestal.
Há uma inequivocável redistribuição de poderes no processo de humanização do parto, redefindo responsabilidades e lugares. Os médicos continuam sendo nossos melhores e indispensáveis “amigos”, quando necessários. Às mulheres cabe retomar seu papel ativo. Humanizar o parto é um processo de ética, cidadania e ação social. Renovação necessária, baste ver a quantidade enorme de denúncias que o CRM recebe contra médicos obstetras.
Reavaliar práticas e concepções é essencial para resgatar o parto como experiência integral da mulher. Se ela quer ter um parto ativo e responsável é preciso que ele, o médico, abra espaço, se coloque de lado, preste um serviço, retomando seu lugar de origem, que é o de tratar a patologia. Parto é evento médico em algumas circustâncias, na maioria das outras é um evento fisiológico perfeitamente compatível com o corpo feminino.
A polêmica parto normal x cesárea, portanto, não diz toda a realidade. O que está em jogo é poder e competência. Terão as mulheres condições de pensar com suas cabeças e entranhas e tomar uma decisão responsável a respeito de como dar à luz seu filho? Ao tomar as rédeas do processo, o que os médicos obstetras na verdade fazem é alimentar as inseguranças delas. E, coincidentemente, eles acabam executando o único parto que conhecem: o medicalizado ou a cesárea. A grande maioria deles nunca assistiram um parto espontâneo e natural. Sua formação acadêmica baseia-se na intervenção, válida nos casos de patologias e distócias. É compreensível, portanto, que eles prefiram o que conhecem, sendo a cesárea o melhor parto para eles pois isenta a mulher de qualquer participação. Nela o médico é o Sujeito Único. O resultado é a perda da relação com a parturiente e o alheiamento do processo fisiológico do parto. Como podemos nós mulheres confiar em profissionais que desconhecem o que é um parto espontâneo e sem intervenções? Até quando hipertrofiar os supostos casos de risco para realizar a cirurgia e salvar as aparências já que é anti-ético abrir uma barriga sem necessidade?
Os desequilíbrios que apontamos não devem porém nos desviar do objetivo. A humanização do parto não visa destituir os médicos de seus conhecimentos, quer enobrecê-los ao reservar-lhe o lugar que lhes compete, o da emergência e patologia. O parto de baixo risco deve ser atendido por quem tem experiência em “normalidade”, que é a missão da nova faculdade de Obstetrícia da USPLeste, ao formar obstetrizes que tratem o parto como evento fisiológico e psico-social.
A humanização do parto não é e não deve ser entendida como uma luta para mudar os monopólios, mas reflete a necessidade de despoluir as relações profissionais e torná-las mais responsáveis e éticas. Não é a mulher que vai comandar e o médico não deve privá-la de uma experiência única e irrecuperável. O desafio que está posto é a criação de uma relação de aliança baseada em competência e serviço, transparência e confiança recíproca.
Isto vem ao encontro de uma dupla exigência: a das mulheres que, ao viverem seus partos em autonomia e liberdade, depararam com experiências poderosas de auto-descobertas e iniciação que ninguém tem o direito de tirar-lhes. A Organização Mundial de Saúde e as Evidências Científicas, por sua vez, sustentam a segurança e viabilidade do parto desmedicalizado. Se a tecnologia acabou substituindo a honesta relação olho-no-olho e promoveu o estranhamento dos processos fisiológicos que pretende curar, seu uso deve ser radicalmente revisto, pois já não estamos mais fazendo medicina.
Concluindo, e respondendo à pergunta do Prof. Lopes: não, a mulher não toma essa decisão sozinha, mas em parceria com o médico experiente que sabe apoiá-la em seu processo interior de auto-capacitação a parir, deixando de ser uma paciente. Humanização do parto significa amor e ciências dando-se a mão na construção de relações sociais sólidas e respeitosas.
Adriana Tanese Nogueira, 44 anos, é presidente e coordenadora da ONG Amigas do Parto, psicoterapeuta e escritora.
http://www.amigasdoparto.org.br/
adriana@amigasdoparto.org.br
Sobre o blog:
“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro” Ricardo H. Jones
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