Sobre o blog:

“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro” Ricardo H. Jones

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Genética Cruel

Uma pérola do Ric... sobre sobre exames que se fazem durante a gravidez....

Magnífico!

GENÉTICA CRUEL

Pergunta que me fiz agora, entre horrorizado e estupefato....(desculpem... estou tendo uma crise existencial neste instante)"Se minha mãe tivesse à mão um exame sofisticado e acurado para detecção de aberrações, e ficasse sabendo no que eu me tornaria, teria mantido a gestação?"
Ai... tenho medo de perguntar a ela...Fico até imaginando a cena...
O médico chega na sua sala, cheio de esfigmomanômetros e estetoscópios "Tycos" pendurados no pescoço, canetas Parker(*) no bolso do jaleco e coloca o envelope escuro que contém o resultado dos exames próximo de umas caixas de amostra grátis de Entero Viofórmio. Olha para minha mãe com uma certa gravidade. "Pose é tudo; somos atores; tenha sempre isso em mente", lembra-se ele.
Pigarreia e finge estar cheio de preocupações na cabeça, quando, em verdade, está lembrando da mulher de peitos volumosos que acabou de encontrar no elevador do edifício. Minha mãe cruza nervosamente os braços, protegendo o colo da violência das palavras que teme saírem da boca do seu médico. Pensa nas roupinhas que está fazendo, e tem medo de ter que terminar o crochê no meio. Lembra de seu outro filho, absolutamente normal, cujos exames detectaram a possibilidade de se tornar professor de medicina, matemático, músico e goleiro de futebol de salão, não exatamente nesta ordem cronológica. "Porque não daria certo desta vez", pensa ela?
Na sua família todos os exames apontaram para a positividade, com exceção da sua cunhada, que apresentou positividade para "dono de banca de peixe no mercado".
Sequer havia consenso de que era um resultado claramente inadequado. Mas foi apenas uma, entre tantas mulheres na família... O resultado do exame da sua prima também não pode ser contabilizado como ruim, até porque saiu na capa das revistas que os médicos decretaram que "dançarino de lambada" não podia mais ser classificado como "resultado negativo", tendo sido retirado do DSM como "doença", e colocado como "desvio da normalidade".
Olha para os exames em cima da mesa e treme. "Poderia ser um padeiro, um caminhoneiro ou um dentista. Tudo bem, não tenho preconceitos". Ela sente-se culpada, e sua tensão brota no suor sobre os lábios. "Porque não fiquei vendo o Programa Flávio Cavalcanti até mais tarde? Tinha que apagar a luz! E toda aquela conversa mole de que 'um filho só é pouco'..." Ahhh, se arrependimento matasse teríamos uma emergência médica fatal na sala do obstetra. Os segundos parecem horas. Minha mãe não consegue conter-se de pânico e ansiedade. Olha para a cara do médico e chega a notar a barba crescendo-lhe no rosto. Porque tanto tempo para abrir um mísero envelope? Qual o objetivo desta tortura? Raaaapt.
O médico rasga o envelope lacrado em uma das pontas e vislumbra, espichando o olho, o conteúdo onde estão os exames de detecção genética. Coloca o pedacinho rasgado do envelope num cinzeiro sobre a mesa, onde se lê "Fármácia Xamequinho, sempre cuidando de você". A mão cabeluda do obstetra penetra no envelope, e minha mãe sente um arrepio, sem entender bem porque.
"Ok... agora pelo menos saberei".
Os papéis aparecem na borda do envelope pardo. Consegue ver o timbre vermelho do laboratório. "Laboratório Vita Brevis, sua saú..." As letras se embaralham quando o médico puxa os papéis para perto do rosto. Levanta os óculos fininhos comprados nas óticas "Lince", e franze o sobrecenho.Franzir o sobrecenho faz parte das mais rebuscadas aulas de conduta médica. Conheço um colega que tem uma técnica fantástica de comprimir as sobrancelhas e fazer "hummm" olhando para um traçado de monitor fetal. Ele já foi convidado a palestrar em Harward sobre esta metodologia, e está escrevendo um tratado sobre "mão no queixo e suas implicações terapêuticas". Ele está lendo os resultados. Molha os lábios com a língua e folheia as 3 ou 4 páginas cheias de desenhos e curvas. Minha mãe ainda consegue ver, por translucência, os gráficos impressos na folhas. Uns descem, outros sobem. O que estaria subindo? O que estaria descendo? Será que ele é normal? Poderá estudar, jogar bola, comer pizza? Ou terá anomalias como vegetarianismo, ecologismo ou (credo) tendências esquerdistas?
O doutor finalmente se pronuncia. Mistura palavras difíceis com expressões mais "populares". Ele é piedoso com a ignorância de minha mãe quanto aos jargões."Os exames não foram de todo ruins, madame", diz finalmente o médico, baixando os oclinhos fininhos. Temos alguns pontos positivos, como o time que ele torcerá, mas algumas coisas para as quais a senhora e seu marido devem estar preparados. Não é uma tragédia, até porque a Medicina (ele diz a palavra medicina com a primeira letra maiúscula, mesmo) já fez muitos progressos (pigarreia...) e já existem tratamentos com razoável sucesso (pigarreia de novo). Não quero lhe dar falsas esperanças, mas também não procuro lhe oferecer um quadro demasiado negro. Veja bem, os medicamentos modernos e..." As últimas palavras sequer foram captadas por minha mãe. Os sons entravam embaralhados em seus ouvidos e chocavam com as paredes da cóclea, fazendo com que cada sílaba se repetisse indefinidamente, produzindo uma multiplicidade de ruídos indecifráveis. Escutava a voz do doutor de mão peluda como vindo de um túnel escuro e frio, onde não parecia chegar nenhuma luz. Levanta sua mão lentamente até a boca seca, e de seus lábios de cera brota o pedido último: "Doutor...diz ela com uma voz enevoada, qual o resultado?" O médico olha firmemente para seu rosto. Pela primeira vez ela via consternação no rosto do profissional. Ele tinha algo pesado a dizer, e mesmo os anos de frieza da escola médica não eram suficientes para que ele contivesse o olhar compreensivo e misericordioso."Dona Elba, disse ele, apareceu "homeopata" e "obstetra humanista" no exame. Podemos repetir os exames, ou fazer alguns mais sofisticados, mas eu acho inútil. Eu sinto muito. Fiz o que pude. Mas tente ver pelo lado positivo, se é que a senhora consegue encontrar algum." Minha mãe está imóvel.Olha fixo para um ponto da parede. Não consegue dizer nada, e até a respiração parece ter se interrompido.Não escutou quando o médico pediu a presença do meu pai no consultório, e nem quando ele frisou a palavra "urgência" para a secretária.Os sonhos escorriam pelo chão e se depositavam ao lado da pequena cesta de lixo, onde se lia "Padaria Santa Sé, onde o seu pão é sagrado". "A senhora tem alguma religião", perguntou por último o médico.Inútil. Minha mãe já estava desacordada nos braços da secretária sendo abanada por uma toalha de rosto, onde se lia "Casas Pernambucanas. Onde ser feliz é tão fácil".
Ric
(*) Uma piada do meu tempo de residência, que o Max adorava contar. O professor diz, para um grupo de recém formados, que a melhor definição de um médico é "um cara que tem um Fusca, uma caneta Parker e um par de cornos na cabeça". Neste momento, sempre tem um residente desatento que diz "Putz... eu não tenho caneta Parker !!!"

1 comentário:

moya disse...

LINNNNDOOOO!
LOOOOOOOOOOL