Parto e dor, ontem e hoje
"Aqueles que viveram entre tribos primitivas relatam-nos que eles tendem a não responder da mesma forma que nós ao desconforto físico e à dor da vida. Isto poderá dever-se em parte a uma visão do mundo, partilhada por todos na tribo, que não vê a natureza separada das pessoas, a mente separada do corpo, ou a dor separada do prazer.
Nós pagamos o preço pelo nosso vício do conforto pessoal. Nas sociedades tribais, as pessoas aceitam as experiências desagradáveis e o desconforto como parte da vida. Em vez de responderem à dor do parto com medo e negação, as mulheres são criadas para aceitá-la como uma parte integral e essencial da experiência do nascimento.
Para a maioria das mulheres, dar à luz um filho, requer uma descida abrupta a um lugar onde elas nunca estiveram na sua memória consciente. Hoje em dia, esta jornada é frequentemente feita com relutância, com pouca ou nenhuma visão do que está a acontecer e com pouca preparação real ou orientação. Poucas mulheres encontram no parto aquilo que esperavam. Uma parte ou outra, ou mesmo tudo, é sentido como arrebatador. Muitas mulheres nas sociedades modernas ficam chocadas com a dor do parto. As gerações passadas disseram que as mulheres precisam de sentir a dor do parto. Foi dito que apenas através desta dor uma mulher poderia aprender a amar o seu filho e ser uma boa mãe. Considerando a fonte de tais pronunciamentos – homens do clero, homens filósofos e médicos e homens legisladores, todos aliados contra o direito da mulher receber anestesia no parto, no final do Séc. XIX, não admira que as mulheres tenham tido, nos anos seguintes, desprezo por tais crenças. No entanto muitas mulheres que passaram pelo parto sem drogas mas beneficiando de um apoio carinhoso, afirmam que a experiência as mudou para sempre, pela positiva.
Porque é que as mulheres escolhem usar drogas no trabalho de parto?
Desde que há registo, os humanos sempre deram à luz sem recorrer ao uso de substâncias externas para alívio da intensidade e dor do parto. Excepto em raras e extremas circunstâncias, o senso comum ditava que qualquer coisa que a mãe tomasse poderia prejudicá-la ou ao bebé, ou inibir o processo de parto. Foi apenas nos últimos 75 anos que as mulheres passaram a ser rotineiramente drogadas ou anestesiadas para o parto. Este é um período de tempo muito curto, mas o suficiente para imprimir na nossa cultura a crença de que o parto requer o uso de drogas.
A maioria das sociedades tradicionais compreendeu que o parto produz um estado alterado de consciência que traz à mulher força e resistência extraordinárias e torna possível mesmo para uma mulher bastante frágil parir o seu filho sem assistência e sem uso de drogas mais fortes do que plantas. A maioria das culturas encontrou formas de ajudar uma mulher a manter a confiança e força interior durante o trabalho de parto e lidar com a dor das contracções. Apenas a cultura ocidental moderna construiu um sistema de atendimento baseado na crença patriarcal de que a mulher não é capaz de parir por si só e de que o corpo humano feminino não está desenhado para lidar com a dor do parto.
A principal razão pela qual as mulheres foram rotineiramente hospitalizadas para parir, no princípio do século XX, foi criar um ambiente controlado onde mais facilmente os médicos poderiam administrar drogas às mulheres em trabalho de parto. Actualmente a grande maioria das mulheres espera vir a precisar de drogas e acredita que deverá poder tê-las a pedido. Os médicos, na sua maioria, concordam com elas e encorajam o uso de drogas.
A principal diferença entre as mulheres que estão a parir nos dias de hoje e as suas avós é que estas acharam o processo de parto tão perturbador que nem queriam estar acordadas durante o mesmo, enquanto que hoje as mulheres querem estar acordadas, só não querem sentir dor.
Tradicionalmente, as mulheres têm cantado ou repetido orações para afastarem a sua mente da dor das contracções, ou para mudar o seu estado de consciência de forma a que a dor se torne apenas um elemento da experiência. Frequentemente, as mulheres hoje fazem o oposto: elas focam tanta atenção na dor, desde cedo na gravidez, durante as aulas de preparação para o parto, até ao dia do parto que acabam por se auto-programar para uma dor insuportável. Existe uma cultura inteira à volta de evitar a dor. Não apenas no parto mas em todos os aspectos da vida moderna. E muitas pessoas isolam a dor do parto como sendo de alguma forma diferente e particularmente insuportável. Perderam a visão da imagem como um todo e focam-se compulsivamente num único aspecto: o quanto o parto dói.
Qualquer pessoa que pratique exercício aeróbico, aprecie longos passeios ou jogging sabe quão fácil é tornar-se uma vítima das sensações do corpo, todas as dores e desconfortos que vêem quando fazemos coisas que puxam pelos nossos limites físicos. Se estivermos a escalar uma montanha e concentrarmos a nossa atenção no quão difícil a subida é, ou quão cansados estamos, ou quão tensos estão os nossos músculos, em como o nosso coração está a bater depressa ou a nossa falta de ar, podemos estar a massacrarmo-nos durante toda a escalada. Mas mantendo uma atitude positiva e focando a nossa atenção no prazer de estar de boa saúde e no meio da natureza fazem o esforço valer a pena. Ajuda admitirmos que o desconforto está lá, mas não nos sentirmos vítimas dele. E o propósito do parto afinal é o nascimento de uma criança".
Extraído de Suzanne Arms "Immaculate Deception II - Myth. Magic & Birth.
Tradução de Carla Guiomar
retirado de http://doulasdeportugal.blogspot.com
Sobre o blog:
“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro” Ricardo H. Jones
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