Por Adelise Noal Monteiro*
29 de Junho de 2007
Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado.
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro.
Mas sempre alto.
E dentro de tudo.
Cecília Meireles - As mulheres durante a gestação tornam-se mais suscetíveis a todo tipo de ambiente emocional. Mesmo aquelas que não davam importância à vida onírica, na gravidez, passam a dar mais atenção às paisagens internas e buscam seu significado. Por isso o grande interesse neste tema.
Marie Louise Von Franz, uma das principais colaboradoras de C. G. Jung, há mais de 20 anos iniciou uma pesquisa onde buscou os sonhos de mulheres grávidas em várias partes do mundo (publicado em “Dreams”, edição inglesa). Neste período eu estava grávida e pude também lhe enviar uma seleção de sonhos.
O livro Sonhos e Gravidez de Marion Rauscher Gallbach é outra referência de pesquisa mais recente. Trata-se de uma dissertação de mestrado que observa os sonhos de mulheres na primeira gestação, a estreita passagem de ser filha para ser mãe.
A idéia central nesta abordagem é compreender como se constrói o processo criativo na alma feminina e qual seu suporte adaptativo durante a gestação.
Na visão junguiana, o sonho é um fenômeno natural e espontâneo da psique que funciona de forma independente de intenções da vontade consciente. É produto do inconsciente.
Temos sonhos que nos remetem a memórias do passado, do que foi esquecido, das mensagens subliminares, das emoções reprimidas. São sonhos vindos de uma camada mais superficial do inconsciente, chamada de inconsciente pessoal.
Temos também sonhos que refletem o contato com nossa herança psíquica coletiva e com o potencial de vida futura. Estes sonhos vêm de camadas mais profundas da nossa estrutura psíquica, do chamado inconsciente coletivo.
Segundo Jung, esta camada coletiva é matriz da vida afetivo-emocional.
Por analogia, sua atividade poderia ser comparada ao endométrio que acolhe o óvulo fecundado. O aumento de fluxo sanguíneo e de nutrição que acontece no útero grávido é concomitante ao aumento do fluxo de imagens produzidas pelo inconsciente. Mais “vascularizado” este fluxo emite sinais que encontramos nos sonhos, nos pré-sentimentos, intuições e visões de mulheres grávidas. Sinais estes, especialmente marcantes no primeiro e terceiro trimestre da gravidez, tempo onde a necessidade de segurança emocional é maior. Este é o momento de visibilidade da função auto-regulatória da psique, que age através do material simbólico contido nos sonhos, compensando a vida consciente, devolvendo a confiança e restaurando o equilíbrio psíquico.
A gravidez se caracteriza por uma alteração na identidade da mulher, ela não se reconhece mais - principalmente no caso da primigesta -, ocorre um deslocamento do eixo das atenções, antes voltadas mais para o meio externo. A relação com seu corpo, seu sentido físico, no transcurso dos dias, na contagem das semanas de gestação a convidará a construir uma nova biografia.
A mulher deve estar empenhada em descobrir as adaptações e o amadurecimento psicofísico passo a passo. A gravidez, assim como o parto, é um acontecimento da esfera biopsicossocial e o inconsciente responde a ambos com informações arquetípicas, constelando principalmente o arquétipo materno.
O materno é um aspecto do arquétipo feminino que pode ser desenvolvido com mais intensidade a partir de uma experiência de maternidade. Sob a influência do arquétipo materno, dentro deste casulo, a mulher passa pela transformação de menina a moça, de mulher a mãe. Da condição de ser gerada para geradora. Acessa a fonte criadora que no seu corpo tem como endereço seu útero grávido. A consciência deste aspecto materno traz à sua vida psíquica um acréscimo do elemento Eros - está contido em Eros a capacidade de se relacionar, de estabelecer laços afetivos, e tem seu centro no coração. Coração e útero, dois órgãos que atuam juntos neste processo.
A medicina tradicional chinesa – MTC - explica que o Rim como órgão do sistema Zang Fu cuida e sustenta a gravidez. Os meridianos do Coração e do Rim formam juntos o grande meridiano Yin mais profundo do corpo. A MTC diz também que o coração é o hospedeiro da mente e a emoção relacionada a ele é a alegria.
Visto de todas as formas, a natureza se manifesta exuberante no rico material simbólico e onírico que pode ser explorado, decifrado e traduzido em imagens plásticas. Vivido como uma iniciação feminina, a gravidez pode ser o primeiro olhar que a mulher dá para Si-Mesma, para seu mundo interno, para sua alma, onde encontra o movimento ondulante formador da vida da qual ela participa.
Nas pesquisas citadas inicialmente, foi encontrada uma grande quantidade de sonhos com o elemento água, quase nada do elemento fogo e ar e pouco do elemento terra. Águas doces de rios, cachoeiras, águas salgadas do mar. Grandes travessias oceânicas. Paisagens de ilhas ou de arquipélagos. Chuvas torrenciais, peixes pulando no mar. Nadar no lago. Banhos em piscinas, em banheiras. Todo tipo de purificações pelas águas.
A mulher grávida nos sonhos compartilha do mesmo ambiente da pequena vida contida em seu útero. Sem distinção: quem é a mãe, quem é o filho. É o sonho da mãe ou é o sonho do filho sonhado pela mãe. Um estado de participação mística, uma experiência de conjunção psicofísica entre a mulher grávida e seu bebê intra-útero, de proporção inigualável, que merece nossa atenção.
Temos também os sonhos de cuidado e alimentação de filhotes de animais, ou do seu próprio bebê ou a observação do crescimento de árvores e plantas. Ela pode sonhar com seu parto e antever os futuros acontecimentos. A mulher grávida expressa em sonhos os ciclos de florescimento e crescimento da natureza.
Na minha primeira gravidez tive um episódio de ameaça de parto prematuro com 26 semanas de gestação, precisei fazer repouso. Com este tempo, o feto ainda não é considerado viável, fiquei assustada, mas de súbito, lembrei que dois anos antes de ficar grávida havia tido uma série de sonhos com gravidez e partos prematuros que terminavam sempre bem. Num destes sonhos, eu ganhava um bebê prematuro de 28 semanas, ele passava bem e era um menino. Realmente tive um menino, prematuro de 31 semanas devido a uma pré-eclampsia.
Pré-eclampsia é uma doença da gravidez que se caracteriza por uma perda de proteínas pelo rim, gerando os sintomas de edema generalizado e hipertensão arterial sistêmica. Durante esta mesma gravidez em torno do quinto mês (20 semanas), sonhava que comia vários tipos de refeições com carne. Eu já era vegetariana há muitos anos e nunca tinha tido sonhos desta natureza. Pensei então que meu organismo estava precisando de um acréscimo de proteínas e comecei a comer carne.
Os sonhos anteciparam os cuidados e a atenção que deveria ter, pois seria uma gravidez de alto risco. A memória dos sonhos me deu a tranqüilidade que precisava para ultrapassar o momento crítico e confiar na força criativa da natureza que agia em mim e me ensinava a ter calma, ter paciência, a me entregar sem medo ao desconhecido.
Gravidez, parto e a experiência corporal resultante, providenciam uma oportunidade de medir, explorar e expandir nosso senso e conhecimento de quem somos como seres humanos do sexo feminino. Nossa experiência no mundo patriarcal gerou um gradual desaparecimento do significado do destino biológico da mulher, então nos cabe a tarefa, como mulheres de um novo tempo, encontrar o sentido de nossa maternidade internamente, buscando na fonte natural, um reposicionamento frente à vida, tanto no nível pessoal como no nível da coletividade em que estamos inseridas.
Sou entre flor e nuvem,
Estrela e mar.
Por que havemos de ser unicamente humanos,
Limitados em chorar?
Cecília Meireles
*Adelise Noal Monteiro é médica pediatra e analista junguiana. Integra a ONG Amigas do Parto.
http://www.amigasdoparto.org.br
Sobre o blog:
“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma via ecológica e sustentável para o futuro” Ricardo H. Jones
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